Aviões, padres e balões de festa junina
Em menos de um mês, dois episódios envolvendo balões quase provocaram tragédias. Há uma frase de Claude Chabrol que ilustra bem essa questão: "A estupidez é infinitamente mais fascinante que a inteligência; a inteligência tem seus limites, a estupidez não."
Esta semana, um balão em chamas caiu no pátio do Aeroporto Internacional de Guarulhos, a poucos metros de uma aeronave abastecida com milhares de litros de combustível altamente volátil. O fato, noticiado em muitos telejornais, teve grande repercursão por conta das imagens eloquentes de fogos de artifício estourando em um lugar onde nem o acender de um fósforo é permitido. Como sempre, muito se falou dos incêndios causados por estes artefatos quando caem na mata ou em fábricas e residências. Porém, uma vez mais, um dos grandes riscos potenciais foi sumariamente ignorado: o vasto tempo em que estes balões permanecem no ar.
Podemos parecer um tanto rudes ao falar do padre Adelir de Carli, mas na verdade, a sua completa irresponsabilidade é mais áspera que qualquer palavra que possamos vir a usar. É muito fácil encontrar pessoas que desaprovem agora o que ele fez, incluindo seu instrutor numa escola de parapente de Curitiba, que o desligou do curso por irresponsabilidade, exibicionismo e risco a ele mesmo e a terceiros. Segundo Ernesto Klein, seu coordenador de voo – sim, ele tinha um! – o padre sabia usar o GPS, que o instrutor alega ser um modelo usado apenas para caminhadas. Bom, fosse qual fosse, como um desses que usamos em carros, também poderia fornecer coordenadas precisas de longitude, latitude e até altitude para quem estivesse em terra encontrá-lo. Esse não é o ponto. Não importa muito se o padre Adelir de Carli sabia ou não utilizar o aparelho: a simples decisão do voo em si foi absurda e infinitamente egoísta. Nos muitos vídeos que existem da "decolagem" do padre, erguendo-se do chão na tarde chuvosa do litoral paranaense sob uma impressionante coluna de mil balões, não há nada que se aproxime de uma reprovação enfática. No máximo alguém gritando ao fundo que "o velho é maluco". Os carros dos bombeiros, parados lá fazendo qualquer coisa menos impedí-lo de colocar em risco vidas humanas, tocam suas sirenes em homenagem ao lunático que se dirige às nuvens, ou acima delas – depois de ultrapassá-las, o padre viajaria em tempo bom, dizia. O que liga o padre ao ponto crítico deste artigo? O fato de ele estar invadindo, em meio às nuvens, um espaço dedicado a outro tipo de aparelho: os aviões.
Para nós, que trabalhamos lá em cima, que escolhemos como profissão proteger a vida dos nossos passageiros e levá-los com segurança aos seus destinos, nada soa mais ultrajante que uma pessoa nos pondo a nós e a milhares de outros em perigo gratuitamente. Tanto comissários como pilotos estudam a vida inteira para conhecer e dominar técnicas e procedimentos que tornam cada dia mais segura a aviação mundial. Graças a esse empenho contínuo, e ao de muitas outras áreas da aviação – dos fabricantes à manutenção e ao controle de tráfego aéreo, por exemplo – voar hoje é algo corriqueiro e muito seguro. As pessoas em geral acham que todo acidente de avião é fatal, mas na verdade, 97% dos pouquíssimos que ocorrem têm sobreviventes. Bem menos de um em cada dois milhões de voos termina mal, e mesmo incluídos estes, há apenas 0,014 de perdas de vidas humanas a cada 100 milhões de passageiros por quilômetro voado. Essa percepção foi posta em xeque no Brasil graças a dois acidentes envolvendo aeronaves de médio porte das duas maiores companhias aéreas do país em menos de um ano. Foram mais de 350 vidas perdidas, em ambos os casos pela incompetência e falibilidade inerentes ao ser humano, e colocados em evidência por desleixo das autoridades e capricho das estatísticas. Ainda assim, frente aos milhões de passageiros que passam ilesos pelo sistema todos os meses, não resta dúvida de que é sim seguro voar, embora isso claro, não diminua em nada a necessidade de esforços das companhias e principalmente do poder público em aumentar os níveis de segurança do tráfego aéreo brasileiro.
Neste contexto, o vôo cego do padre Adelir é nada menos que uma sabotagem à esses esforços. Infelizmente, não é nada raro uma ave ser atingida por um avião. Isso, em Segurança de Voo, é conhecido como "perigo aviário". Como nosso país é bem mais prolixo em pousos e decolagens que em medidas para tirar as aves de perto dos aeroportos, foram mais de mil incidentes envolvendo choques de pássaros e aeronaves nos últimos dois anos, segundo dados de CENIPA – Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos. De uma simples mossa no bordo de ataque até pára-brisas destroçados e pilotos que ficam cegos e perdem o direito à paixão por voar, há de tudo nas consequências destes choques. Importante frisar que um urubu ou uma garça – como aconteceu esta semana no Tom Jobim – são bem menores que um padre, e voam bem mais baixo. Mas vamos por partes: não existe ver os balões do padre pela janela e desviar deles. Os pilotos de grandes jatos comerciais não voam olhando para fora, e sim para os seus painéis, onde toda a informação que necessitam aparece – e é por isso que numa noite chuvosa ou em meio à neblina não muito forte, é possível manter a normalidade das operações, afinal só é necessário olhar para fora nos minutos finais do voo. Mesmo que o padre pudesse ser visto – o que em meio à camada de nuvens ou à noite é simplesmente implausível – seria muito difícil perceber a tempo que ele estava na rota da aeronave. O padre não tem transponder, e portanto não aparece no TCAS de ninguém, nem no radar do Centro Curitiba, o qual invadiu sem cerimônia naquela fatídica tarde. Sabemos que ele chegou em poucos minutos a 5800 metros de altitude, em meio ao tráfego pesado de aviões que chegam ou passam pela movimentada terminal da capital paranaense, ligando o sul ao sudeste do país. São dezenas de aviões que foram postos em perigo, cada um levando centenas de pessoas inocentes, tantos os passageiros quanto nós, tripulantes, que também queremos voltar inteiros para casa ao final do voo. Os aviões que atingem pássaros geralmente estão decolando ou pousando, ou seja, nas menores velocidades em que é possível voar, cerca de 230 quilômetros por hora para um Boeing ou Airbus. Já o padre, voava onde não há pássaros, e onde se voa muito mais depressa. Para ir de São Paulo a Porto Alegre em uma hora e vinte, voa-se bem rápido, e embora o padre estivesse à metade da altura de um cruzeiro típico, ali a 18 mil pés, as velocidades praticadas ainda são da ordem de 400 a 700 quilômetros por hora. Ou seja, se realmente um de nossos aviões tivesse atingido o senhor Adelir de Carli naquele início de noite, é praticamente certo que as buscas no dia seguinte seriam não por uma pessoa, mas dezenas de corpos espalhados por quilômetros de mar. De certa forma, foi um milagre que só o padre tenha perecido na empreitada.
Mas só por que o Deus em que o padre acreditava nos poupou de tal carnificina e de quebra nos preveniu do exibicionismo de seu fanático seguidor, não significa que estejamos à salvo: as festas juninas estão chegando.
Todo ano, incontáveis balões são lançados aos céus do Rio de Janeiro e de São Paulo carregando fogos de artifício, penduricalhos incandescentes e não raro alimentados por botijões de gás, iguais a esse da sua cozinha. Como de praxe, as campanhas enfatizam os incêndios causados pelos mesmos, mas pouca gente para pra pensar – talvez só nós, que trabalhemos lá em cima, é que paremos – no real risco do choque de uma aeronave com um balão desses. As ocorrências de quase choques somam-se às dezenas, e até alguns já foram mesmo registrados, por sorte, sem maiores consequências. Mas nessa loteria insana e desnecessária, é questão de tempo até que algo grave venha a acontecer. Afinal, convenhamos: atingir um botijão de gás a 400 quilômetros por hora não é muito menos danoso do que teria sido acertar o padre, e olha que o botijão não acredita em Deus e nem GPS tem.
Já que mal existem leis que nos defendam, e os baloeiros não ligam de tocar fogo aqui e ali, quem sabe esse artigo abra os olhos da sociedade e, nos dando conta do urgente perigo, consigamos parar essa estupidez tristemente fascinante.
Enderson Rafael é escritor, comissário e estudioso de segurança de voo.
Obrigada pelos esclarecimentos sobre voos. Seu texto é muito bonito, preciso & coerente. Um abraço & Parabéns. Maria José Limeira.
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