De alguns pontos de vista, muitíssimos. De outros, nem tanto. Enquanto vocês e eu esperamos ansiosos para descobrir quem (e quando) publicará meu próximo romance, “Três Céus”, vamos descobrir um pouco mais do mundo da aviação, pano de fundo deste livro tão aguardado. Uma reportagem especial do Fantástico levantou várias questões. Para os governistas, não passa de intriga da oposição. Para a FAB, é um festival de sensacionalismo e imprecisão. Eu diria que a matéria aborda o assunto certo da maneira errada.
Estatisticamente, voar é mais seguro que quase tudo. Este ano, já morreram 60 pessoas em acidentes de avião e helicóptero no país. No trânsito, nos mesmos 7 meses, morreram 20mil. E o pior: assassinados, lá se vão 30mil. Então, fica bastante óbvio que, dependendo do ponto de vista, voar é muito seguro, uma vez que, pelo menos este ano, tem sido mil vezes mais provável que alguém morra no Brasil num carro acidentado ou vítima de um tiro do que voando. E a estatística, importante ferramenta para elucidar este tipo de coisas, traz outros dados interessantes. O número de acidentes entre os jatos para mais de cem passageiros varia conforme a região no planeta. No Brasil, temos uma média, segundo Ivan Sant’Anna (autor de “Caixa-Preta” e “Perda Total”), de 1,7 acidentes por milhão de voos. Pode parecer pouco, e é. Mas essa média é quase 6 vezes pior que a americana e a europeia. E aí, quanto mais mexemos, mais as coisas aparecem.
Por exemplo, só para exemplificar como temos tido mais sorte que juízo, nos Estados Unidos, que tem a maior frota do mundo, centenas de vezes maior que a nossa, em 2010, foram registradas 43 quase-colisões (quando uma aeronave passa mais perto de outra do que deveria). No mesmo período, apenas na área terminal de Brasília, foram 24. Sinal de que as estatísticas reais estão bem longe das potenciais, o que é um péssimo sinal para uma aviação como a nossa que cresce 10% ao ano. Nem falemos de conforto (após a ampliação de Guarulhos prometida pela Infraero, o aeroporto terá capacidade para 26,5milhões de passageiros, mas até o final do ano, já serão 31milhões), falemos de segurança mesmo. Pistas esburacadas, sem área de escape, pouco espaço para manobra e estacionamento de aeronaves, pouca estrutura para receber tantos aviões. Isso tudo impacta na segurança. A reportagem do Fantástico focou mais no controle do espaço aéreo, de maneira leviana: voando VFR (regras de voo visual), a reportagem abordou o tema como se os tráfegos mostrados (que voavam em IFR, regras de voos por instrumentos, usadas pelos grandes aviões comerciais) entrassem a todo momento em conflito com eles. É uma inverdade das grandes, desmentida exemplarmente em nota pela FAB. Mas isso não significa que esteja tudo uma maravilha e que a reportagem não seja sim, pertinente. Vamos às perguntas dos leitores:
Existem os tais buracos negros?
Sim, existem partes do país que não são cobertas por radar, mas são bem poucas. O maior problema mesmo é a qualidade dos controladores, muitos inexperientes, sem proeficiência na língua inglesa, numa carreira pouco valorizada e por demais militarizada (o completo contrário de países desenvolvidos). A qualidade dos aparelhos de radio-navegação e das frequências no Brasil também é bastante ruim. Além de um troca-troca de frequências que confunde mesmo os mais experientes pilotos, há forte interferência de rádios piratas e até de celulares, e aí sim, há buracos negros: locais onde as frequências de rádio funcionam mal ou nem isso, impedindo a comunicação entre pilotos e controladores. No caso do 1907, bem mais do que dos pilotos americanos, a falha foi dos controladores brasileiros que, das poucas vezes que os orientaram, o fizeram errado e displicentemente (“Clear to Manaus, FL370” – e eles fizeram exatamente isso, o tempo todo), e após perder contato com o avião, nada fizeram para evitar o choque. Para azar maior, ambos os aviões passavam justo por onde o controle de Manaus passa para o de Brasília e vice-versa, o que potencializou o risco.
Pousar em Congonhas é perigoso?
Nenhum piloto diria isso, mas com certeza afirmaria que é um aeroporto crítico. Nenhuma aeronave que opere lá está fora dos pré-requisitos para fazê-lo. A pista nem é tão curta (embora esteja a 750m de altitude, o que influencia na performance dos aviões), mas o seu maior problema é a completa ausência de uma área de escape. É normal aeronaves vararem pistas. Por mais que tudo seja calculado para que elas parem naquele espaço, pode acontecer, por falhas na pilotagem, nos auxílios de frenagem, por características da própria pista, por vento. Acontecem várias varadas de pista no mundo todo, todos os meses. O que não é normal é um aeroporto não ter área de escape e você cair na avenida ou nos prédios se não conseguir parar antes da cabeceira oposta. O acidente com o Airbus não foi problema da pista, foi de cultura corporativa, do avião e da tripulação. Porém, se tivesse acontecido em Guarulhos, não passaria de um susto e um avião cheio de grama. Em Congonhas virou uma tragédia. Mas a pista estava ruim, no dia anterior, um ATR aquaplanou realmente. O fato é que sim, vai acontecer de novo. Congonhas só seria muito mais seguro se os passageiros abrissem mão do conforto em prol da segurança e parassem de comprar passagens de e para lá, o que faria as grandes companhias abandonarem o aeroporto – o que sabemos que não vai acontecer. Ou se a ANAC forçasse a operação no aeroporto para aeronaves bem mais leves, menores e com voos menos frequentes. Do contrário, é uma bomba relógio armada. E a contar pelos últimos 5 anos, um a cada 157mil voos sai da pista por lá.
O que é turbulência?
Turbulência é o efeito do movimento do ar – ventos – em várias direções sobre uma aeronave que esteja voando. Existem turbulências de vários tipos: associadas a nuvens, turbulências associadas ao relevo sobre o qual se está voando, associadas a bolsões de ar quente que se elevam do solo, outras decorrentes da esteira deixada por outra aeronave que tenha passado por ali pouco antes, e há também as menos detectáveis de todas: as turbulências de céu claro, que acontecem na alta atmosfera associadas a correntes de ar que circundam o planeta em alta velocidade, daí a importância de se manter o cinto afivelado sempre que sentado. Os aviões resistem muito bem à turbulência, foram projetados pra isso. As mais fortes, em geral desviamos delas, e pras outras, a aeronave aguenta. O risco mesmo é de você estar sem cinto e ser arremessado contra o teto e contra outras pessoas. Então, uma vez dentro do avião, por mais calmas que as coisas estejam, procure ficar sentado e de cinto. Dezenas de pessoas se machucam assim todos os anos, às vezes gravemente: não queira ser mais uma delas.
Por que eu tenho medo de avião?
Existem motivos lógicos (você não sabe muitos detalhes de como ele voa, não entende o quão seguro ele é, não tem, portanto o conhecimento ao seu favor – como os tripulantes têm) e outros não-lógicos (não é você que está controlando, estatísticas são difíceis de assimilar, você tem uma percepção errada do risco, você não confia na máquina e nas pessoas que a estão operando). Na minha opinião, a melhor arma (mas não a única nem infalível) contra o medo é o conhecimento. Não é mesmo fácil entender como uma coisa de 80 toneladas voa na velocidade de um campo de futebol por segundo e à uma vez e meia a altura do Everest e praticamente todo mundo que experimenta sobrevive para contar a história. Mas é assim que as coisas são... No seu próximo voo, qualquer dúvida, pergunte aos comissários. Eles e suas milhares de horas de voo deixarão você mais tranquilo, prometo.
Você já teve medo de morrer durante algum voo? Já chegou ao limite do seu medo?
As companhias aéreas regulares do Brasil operam com padrões altíssimos de segurança e profissionalismo. Se o atendimento às vezes deixa a dever, a segurança raramente sofre um deslize. Logo, é muito raro mesmo que tenhamos que enfrentar situações de alto risco durante as operações, e a imensa maioria de nós encerrará a carreira sem nunca ter passado por uma emergência. No entanto, quando isto acontece, praticamente todos os tripulantes entram num estado de alerta. Pode sim haver tripulantes que se desesperarão, que cristalizarão, mas a grande maioria, numa mistura de paixão por seu trabalho e conhecimento extremamente internalizado por exaustivos treinamentos, assumirá uma postura diferente do normal. Isso é o que a gente imagina mas também o que a experiência prática demonstra. Suas emoções ficam suspensas enquanto você presta atenção a todos os detalhes, quantifica e qualifica todos os desdobramentos possíveis e se prepara para agir para resolver aqueles problemas antes mesmo que aconteçam. Enquanto um passageiro leigo verá “a vida dele” passar na frente dos seus olhos, é bem provável que os tripulantes estejam vendo a sequencia de procedimentos a serem tomados tão logo possível para que todos possam sair vivos dali. Depois, claro, nós desabaremos também, temos amigos, família, amores: ninguém é máquina. Mas naquele momento, o ideal e o mais provável que hajamos como robôs pré-programados para situações de emergência. Há ações intuitivas, mas a maioria das decisões será baseada nos treinamentos. Há procedimentos para praticamente tudo que vocês sequer possam imaginar – é muito difícil derrubar um avião! Pilotos e comissários preparam-se antes de cada voo, fazem um briefing onde relembram o papel de cada um em cada uma das mais variadas situações possíveis. É por isso que 90% dos acidentes aéreos têm sobreviventes: porque é pra isso que os tripulantes técnicos e comerciais são treinados. Um estudioso de segurança de voo uma vez disse: “O melhor dispositivo de segurança de qualquer aeronave é uma tripulação bem treinada e comprometida”. Mas falhas catastróficas, em que nada que a tripulação faça pode salvar o avião, existem. Faz parte da natureza radical do negócio. E pra piorar, como vimos até aqui, nosso sistema aéreo deixa a desejar em muitos aspectos, e fora ser a favor ou contra este ou aquele governo, vivemos num país com alta demanda por transporte aéreo e infra-estrutura insuficiente e letárgica. Aeroportos mal planejados e subdimensionados, inclusive em projetos novos, e espaço aéreo com controle bom, mas não excelente. Então, não, não tenho medo de morrer. Mas tenho medo de morrer à toa como tantos colegas que perdemos em anos recentes.
No “Três Céus” dá para notar a amizade que se adquire entre os comissários. Você já fez alguma inimizade?
Não só entre os comissários, mas entre estes e os pilotos também, uma boa relação é crucial para que não só a hierarquia seja respeitada, mas para que o voo seja conduzido da melhor forma possível e voltemos todos em segurança para casa. Mas claro que há pessoas difícieis de lidar, e assim como colecionamos dezenas de exemplos profissionais que temos prazer em seguir, há sim, uns e outros com quem preferíamos não ter voado. Mas são muito poucos mesmo. Mas, se serve de alento, as tripulações sempre mudam: então aquele chefe chato, aquele comandante cheio de manias, aquele auxiliar folgado ou aquele copiloto marrento só terão que ser suportados por alguns dias. Depois troca e você esquece. O grupo de voo é ótimo, e é bom que seja assim: afinal passar seis dias seguidos longe de casa com gente que você não suporta deve ser um passaporte para a depressão, não é?
Por que pousos e decolagens são os momentos mais críticos do voo?
Acidentes como o do Air France são raríssimos. Correspondem a menos de 20% de todos os acidentes. 80% deles acontecem em operações de pouso e decolagem. E isso tem um motivo simples: é quando o avião está mais lento e mais baixo, ou seja, mais vulnerável, com pouca margem para consertar qualquer coisa que saia do programado. E neste ponto, como vimos, o Brasil deixa muito a desejar.
Enfim, o Brasil é um país com imensas potencialidade em todos os campos, e na aviação não é diferente. Mas embora as companhias brasileiras operem as mais modernas aeronaves do mundo, elas convivem com aeroportos e auxílios de rádio e navegação obsoletos. Aviação não pode ser política de governo: tem que ser política de Estado. Não importa quem está na presidência, no congresso, no ministério. Ela deve ser priopridade máxima. A aviação é um campo estratégico para o desenvolvimento de um país de dimensões continentais como o nosso, e estamos muito, mas muito atrasados com relação a boa parte de nossos vizinhos e concorrentes, em todos os aspectos. O “custo Brasil” encarece as operações, e fica difícil companhias daqui (que pagam 40% de carga tributária) competirem com empresas estrangeiras (que pagam 20%, 16%, 8%...), então cada vez menos voamos pra fora em aeronaves brasileiras, e o futuro caminha rápido na direção em que só voaremos aqui dentro mesmo. Os aeroportos são caros, ineficientes, desconectados com demais sistemas de transporte público, sem estacionamento, mal planejados. Em qualquer país decente, o metrô passa no aeroporto, há vagas sobrando, pátio sobrando, pistas largas e lisas. Mas na 7ª economia do mundo, temos uma infra-estrutura de padrões muito inferiores a de países como Chile e África do Sul. São erros básicos, como lixões na cabeceira das pistas que atraem urubus – perigo enorme e que traz prejuízos altíssimos todos os anos em colisões – cidades que crescem sem controle ao redor de aeroportos (como Congonhas) e depois querem impor suas vontades (as pessoas reclama do barulho, mas quando elas foram morar lá, o aeroporto já existia), pistas mal projetadas (se as pistas de Guarulhos estivessem 200 metros mais distantes uma da outra do que estão, poderiam operar simultaneamente dobrando a capacidade do aeroporto, mas parece que ninguém pensou nisso quando o aeroporto foi feito), pisos esburacados e que cedem ao peso dos aviões (Porto Alegre, Cuiabá, Rio Branco... vários exemplos). A diferença é gritante quando você pousa em outro país. Aeroportos espaçosos, pistas largas e sem solavancos. Dinheiro não falta, temos uma verba enorme destinada ao setor. Mas as obras vivem sendo embargadas pelo TCU por suspeitas de irregularidades, vários cargos importantes de orgão públicos responsáveis pela aviação são ocupados por leigos no assunto. A gestão pública da aviação no país sofre de um processo de politização e desprofissionalização impensável. Temos algumas da companhias aéreas mais bem geridas do planeta, com diretores e vice-presidentes extremamente técnicos e profissionais. Se a diretoria de operações de uma empresa aérea sempre é ocupada por um piloto experiente, se a diretoria de manutenção de uma companhia sempre é gerida por um técnico de manutenção experiente, e assim sucessivamente com marketing, financeiro, recursos humanos, safety, por que com os orgãos públicos deveria ser diferente?
“Três Céus” é um romance, uma história de ficção, de amor, de vida. Mas é impossível deixar de transparecer uma crítica a um sistema que não acompanha a demanda e o sucesso de empresas, funcionários e passageiros. Que voam e crescem não graças à gestão pública do setor, mas sim apesar dela.
Enderson Rafael é escritor, autor de “Todas as estrelas do céu”, “Três Céus” e comissário com mais de 5mil horas de voo pelo Brasil e pelo mundo.
Link para reportagem e para nota da FAB http://www.osamigosdaonca.com.br/2011/08/fab-lanca-nota-oficial-rebatendo.html
ResponderExcluirComecei a ler o post na sexta, mas desisti porque eu ia viajar à noite e ia acabar ficando com medo. Nessa viagem, BH-São Luís, sofri um pouco com a desorganização nos aeroportos. Felizmente, quanto à segurança não tive nenhuma experiência, e espero não ter. Tenho medo de Congonhas; apesar de achar Guarulhos muito bagunçado, quando fui a SP optei por ele. Eu tenho muito medo de altura, e fico apavorada só de pensar em acidentes aéreos. Vôo atrasa, e eu já fico pensando que tem algum problema sério. E nem me fale das turbulências...
ResponderExcluirAcho que já disse isso, gosto muito quando você fala sobre esse assunto. Acho bacana conhecer um pouco mais das outras profissões, principalmente quando é algo que pode afetar diretamente a minha vida.
Bjos
Enderson tem sorteio!! Aproveite http://amazoniaumcaminhoparaosonho.blogspot.com/
ResponderExcluirbeijão!!!!!!!!!!!!!!!!